Uma Educação Libertária é algo bem mais radical do que uma Educação Democrática ou uma Educação Liberal. Neste artigo inicial procurarei dar os principais contornos do que eu entendo como uma Educação Libertária. Como libertário radical, ou anarquista, ou individualista, sou, em primeiro lugar, contrário a toda e qualquer forma de Educação Estatal (administrada, financiada, controlada pelo Estado), e, portanto, sou contra a Educação Pública – acredito que eu seja um caso raríssimo, nos dias atuais, de oposição à Educação Pública. Sou, também, numa variação pequena, contra toda e qualquer forma de Educação Obrigatória ou Compulsória em que o indivíduo é obrigado ou compelido a se educar (ou a ser educado por terceiros — algo que só acontece com alguma violência, física ou psíquica, ou ambas). Na realidade, hoje vou além (mas nem sempre pensei assim) e sou contra toda e qualquer forma de Educação Escolar, mesmo que ela seja não-estatal e, portanto, privada ou particular.
Colocando a minha forma de pensar em uma perspectiva mais positiva, sou favorável à seguinte tese: tudo que diz respeito à educação de um indivíduo deve ser definido e controlado por ele próprio, tão logo seja capaz de tomar esse tipo de decisão. O indivíduo se torna capaz de cuidar da própria vida e tomar esse tipo de decisão por volta dos doze anos de idade – quando deveria também poder ser objeto de ação penal ao cometer um crime. A colocação dessa idade ao redor dos doze anos é algo meio arbitrário, mas, pelo menos, historicamente defensável. Doze anos é a idade do bar mitzvah, no Judaísmo, do batismo, nos ambientes religiosos cristãos que rejeitam o batismo infantil, da confirmação, consagração ou profissão de fé, nos ambientes religiosos cristãos que aceitam o batismo infantil, mas adicionam esse passo a ele. Enfim: por volta de doze anos tem sido fixada a chamada Idade da Razão – cujo início, razoavelmente, coincide com o início da puberdade, a idade em que um menino e uma menina adquirem a capacidade biológica de gerar e ter filhos. O início da Idade da Razão e o início da Idade da Procriação se equivalem. Antes desse momento, o que a partir dessa idade se torna responsabilidade do indivíduo é responsabilidade de seus pais, ou de quem lhes faça as vezes.
Na área mais específica da Filosofia da Educação, que eu entendo como uma reflexão de segunda ordem sobre os discursos (de primeira ordem) que são feitos pela Pedagogia, pela História da Educação, pela Psicologia da Educação, pela Sociologia da Educação, pela Antropologia da Educação, pela Economia da Educação, etc. é mais fácil especificar a que e a quem eu me oponho, do que a que e a quem eu me disponho a defender – mas não me furtarei de fazer isso.
Isso quer dizer que, como libertário (ou mesmo como liberal clássico, que fui a maior parte da minha vida), o cerne do meu ponto de vista está na liberdade de aprender – que é a liberdade do aprendente, tão logo este tenha condições de assumir essa responsabilidade. O resto é consequência. Sou contra a educação escolar porque ela, mesmo que privada ou particular, e mesmo quando de boa qualidade, força a delegação, por parte do indivíduo, de sua inalienável e intransferível liberdade de aprender, para a escola (e para os que nela militam: diretores, orientadores, supervisores e, principalmente, professores ou ensinantes), A educação escolar implica uma transferência de um direito individual, o de aprender, que é intransferível.
O direito de decidir se, porque, quando, onde, e como um indivíduo na idade da razão deve, ou simplesmente vai, aprender alguma coisa, qualquer que seja, é única e exclusivamente dele, indivíduo, célula menor da sociedade. Não é nem sequer dos pais dele – quanto mais de uma escola, de uma comunidade, da uma igreja, da sociedade como um todo, ou, muito menos ainda, do Estado. Esse direito, repito, é dele, e é inalienável e intransferível como os demais direitos individuais que um liberal ou libertário reconhece e defende: o direito à integridade física e mental, o direito de ir e vir, o direito de se associar, o direito de manter consigo o fruto do seu trabalho, o direito de estabelecer contratos, e o direito de ter propriedade de qualquer tipo (menos de um outro indivíduo). O indivíduo é, na minha maneira de ver as coisas, dono (proprietário) de si próprio, de sua mente e de seu corpo, e tem todo direito de decidir o que fazer de sua vida, até mesmo de terminá-la por decisão própria (direito ao suicídio). A propriedade de si próprio, da própria pessoa, é a primeira propriedade privada que um indivíduo deve ter (como John Locke, um dia, deixou claro). Ele pode até destruir essa propriedade, mas não pode aliená-la: transferi-la a terceiros, sem deixar, no processo, de ser um ser humano livre, autônomo, protagonista de sua própria vida e autor de sua própria história.
Diante dessa breve exposição inicial, já começa a ficar evidente, creio eu, por que é que eu, um libertário (que é um liberal clássico mais radical do que os demais), sou contra a educação tradicional, convencional, conservadora, obrigatória, centrada na escola, predominantemente estatal ou pública, que, mesmo no caso da escola particular ou privada, é focada no papel do professor. O currículo, a metodologia e a forma de avaliação são pré-definidos e pré-determinados, seja isso feito pelos professores da escola em suas salas de aula, seja isso oficialmente feito pela própria escola, através de seus dirigentes ou gestores, para todos os professores, seja isso feito pelo sistema de educação, de qualquer nível ou natureza, a que pertence a escola, para todas as escolas do sistema ou da rede.
Meu conceito mais básico de educação é oriundo em Jean-Jacques Rousseau, em seu magnífico livro Émile, ou de l’Education: tudo aquilo que o indivíduo precisa para construir a sua vida (isto é, a vida que ele deseja para si próprio, e para a qual define um plano ou projeto de vida), e que não lhe é dado antes de ele nascer (isto é, tudo o que não lhe é inato), ele precisa obter através da sua educação. É evidente — tão evidente que deveria dispensar a necessidade de ênfase — que ele não vai definir seu plano ou projeto de vida, muito menos construir, em cima dele, a sua vida e a sua história, sozinho, como se fosse um ermitão, ou um Robinson Crusoe perdido, sozinho, em uma ilha isolada. O ser humano não é isso. Mesmo depois da idade razão ele continua a ter família, parentes, amigos, colegas, conhecidos, contatos no Facebook, oportunamente um cônjuge e um lar próprio, depois (espera-se) filhos, etc. e ele pode recorrer a eles, ou ainda a outros, sempre que quiser, e deve recorrer, todas as vezes que achar necessário fazê-lo – mas sempre por decisão dele próprio, e somente dele, e sob responsabilidade única e exclusiva dele.
Educação, portanto, é um processo de desenvolvimento humano. Se não nos educarmos mutuamente — “em comunhão” com os outros, como diz Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido, ou em interação, em conversa, em diálogo, em debate, em discussão, em controvérsia com os outros, ainda que os outros estejam representados pelos textos e livros que escreveram, bem como observando, interagindo e fazendo uso da realidade natural (a natureza) – se não nos educarmos assim, repito, não nos tornaremos seres humanos no sentido pleno da palavra, qual seja: indivíduos livres, autônomos, protagonistas na construção, cada um, de sua própria vida e de sua própria história. Sem educação, seremos como bebês que acabaram de nascer: na melhor das hipóteses, parasitas, em tudo dependentes dos outros; na pior das hipóteses, para sempre seres heterônomos, teleguiados, telecomandados, programados e conduzidos por terceiros, como se fossem robôs, programados e dirigidos por outrem.
Ficou claro, agora, eu espero, por que razão eu sou realmente libertário (levando o liberalismo clássico um passo além), e o que isso envolve e implica. Mas tentarei explicitar ainda mais: sou libertário, e por causa disso:
Sou contra a educação tradicional / convencional, predominantemente escolar, e majoritariamente estatal e obrigatória; e
Sou a favor de uma educação individualista, livre e libertária, não coletiva / não coletivista, não socialista / não comunista, não comprometida com nenhum objetivo ou meta que não se identifique claramente como meu próprio, uma educação não tutelada, nem, muito menos, comandada ou guiada, por coletivos, classes sociais, raças, sexos ou gêneros, ou suas lideranças ou vanguardas, quaisquer que sejam, como, por exemplo, sindicatos ou equivalentes, a “sociedade civil organizada”, a ONU, outras organizações internacionais, como a Internacional Socialista e a Internacional Comunista, etc.
Essa educação da qual sou a favor é uma educação que eu aprendi com Sócrates, Jean-Jacques Rousseau, John Dewey, Ivan Iliich, John Holt, e outros. E, para concluir, devo dizer que não acho que Paulo Freire não deve ser santificado, como a esquerda o faz, mas nem demonizado como a direita tende fazer. No início da década de 80 fui, como diretor da Faculdade de Educação da UNICAMP, então uma instituição bastante diferente do que é hoje, responsável pela ida dele para a UNICAMP, onde ele ficou uns anos. Acho que a crítica que ele faz à educação tradicional, que ele chama de educação bancária, bastante sensata e defensável. Infelizmente, depois de estar de volta ao Brasil, ele foi quase que sequestrado pela esquerda que o manipulou, fazendo dele quase um fantoche.
Em Salto, SP, 3 de Novembro de 2022; revisto em 19 de Abril de 2025.
